23 de março de 2011

O Cerne Místico dos Trilhos

A noite terminou com Beatles na estação do trem. Era a minha primeira vez sobre o trilho até o centro do Brasil. De costas viradas para as portas, uma manada invadia a cada parada aquele longo rabo de sardinha coroado de lixo atômico. Quando a gente olha de rabo de olho, parece que o mundo todo balança. O vermelho desbotado dos parques de diversão que não existem mais, a infância perigosa nos bancos do trem e a sensação do leve descarrilar a cada giro dos pinos. Ainda há casais, loiras de salto, um homem negro de coturnos lendo uma revista sobre aeronaves. Enquanto isso, eu espero a Central. E que ela me chame, pois das estações que se seguem nesse instante não sei nem o cheiro. De repente, eis que surge um homem que grita. Grita. E repetidamente. Insiste na promoção do verão por dois e cinqüenta. Duas barras de chocolate a dois reais e cinqüenta centavos. Vasculho o cobre que me restou do mercadão, brasões de outro tempo, e na ânsia pela doce pasta branca recuso a oferenda a favor de uma moral. A viagem me rendeu esse escrito, mas o enjôo deve vir com a rotina. Àqueles que tentam o sonho, de talvez noites passadas em claro, o chacoalhar do ferro faz companhia. Ainda é dia segundo as lâmpadas enjauladas. No instante em que o negro de coturnos responde ao telefone "oi, meu amor", parece estarmos sendo metralhados. Passa no trilho ao lado uma mesma invenção. Destinos diferentes se cruzam enquanto o menino de blusa azul devora um pacote de biscoitos. Passa outro vendedor e este traz amendoim doce, pipoca e cansaço. Mais da metade das pessoas se levanta ainda com o peso do almoço adiado: é a estação do país que se aproxima. Alceu Valença toca a invenção do mundo nos imensos corredores, meu olhar vagabundo de cachorro vadio olhava a pintada e ela estava no cio. É disto que isso tudo é feito. De arrepios, perco o metrô tentando entender onde estou e para onde vou e relaxadamente solta num banco branco espero o próximo carro, que demora um bocado no calor do subsolo. Calor da quase meia-noite. Sou eu com minhas despedidas sem mais delongas, porque intimidade é pra poucos, se não o que mais me resta? Disfarço a demora coçando uma ferida na cabeça e, pela primeira vez desde a madrugada, sinto o peso do corpo, aceso desde quando era noite. Agora toca um clássico por mim indecifrável, mas acalma os ouvidos. O som e a carne suada com pés que latejam. E lá vem ele de novo, barulhento, e sem nenhum comando minhas pernas o seguem até o assento. O assento verde. O vermelho é dos quase antigos. Por um instante me vejo refletida naquilo que os homens fazem a partir da areia. Ou seria um feito daquele cuja letra "a" tem seu nome?

3 comentários:

Anônimo disse...

Bom texto.

Douglas Bonella disse...

Poxa!!! A gente merece um livro seu, Heim Lígia... Linda escrita. bjão

Gufs disse...

Muito bom o texto! Bastante rico em detalhes, continue assim!